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Acordo com União Europeia aumenta uso de agrotóxicos, diz pesquisadora que deixou o Brasil

Estudo inédito apresentado pela pesquisadora Larissa Bombardi ao Parlamento Europeu alerta que também deve aumentar o desmatamento da Amazônia se acordo com Mercosul sair

Pedro Grigori | Agência Pública/Repórter Brasil

8 de junho de 2021

Populações do Mercosul têm sido tratadas como cidadãos de segunda classe, vítimas de violência química por serem envenenadas com agrotóxicos proibidos na Europa — e esse cenário pode se agravar se for fechado um acordo comercial que reduz em 90% as tarifas sobre pesticidas. Essas são algumas das conclusões do novo estudo da pesquisadora da USP Larissa Bombardi. Conclusões tão graves que as ameaças sobre ela, que já fazia denúncias sobre o uso de agrotóxicos, se intensificaram, e ela deixou o país. “Eu não tinha segurança para lançar esse trabalho vivendo no Brasil, porque sei que ele mexe diretamente com a espinha dorsal da estrutura dessa sociedade e do governo”, disse.

Um atlas inédito da pesquisadora mostra como o Brasil exporta bens básicos como alimentos e produtos de mineração, enquanto importa da Europa tecnologias avançadas. E o estudo da pesquisadora Larissa Bombardi, ao qual Agência Pública e Repórter Brasil tiveram acesso, mostra que o que ela chama de “neocolonialismo europeu” deve ganhar ainda mais força caso o Acordo de Associação entre Mercosul e União Europeia seja ratificado.

O atlas “Geografia da assimetria: o ciclo vicioso de pesticidas e colonialismo na relação comercial entre o Mercosul e a União Européia” foi apresentado pela pesquisadora ao Parlamento Europeu no mês passado. O trabalho escancara os principais prejuízos que o acordo trará para os países do Mercosul: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Entre eles, a expansão da fronteira agrícola, com propriedades agropecuárias adentrando, principalmente, a área da floresta amazônica.

Assinado pelo Governo de Jair Bolsonaro no ano passado, o acordo comercial entre os dois blocos está em fase de ratificação. Se for concluído, o tratado eliminará as tarifas de importação para mais de 90% dos produtos. O Ministério da Economia do Brasil estima um aumento do Produto Interno Bruto (PIB) em até US $125 bilhões nos próximos 15 anos. Se for concluído, o acordo criará uma das maiores áreas de livre comércio do planeta. Juntos, os dois blocos representam cerca de 25% da economia mundial e um mercado de 780 milhões de pessoas.

E quem mais vai ganhar será o setor agropecuário. Produtos como café e fumo terão tarifas totalmente eliminadas, o que vai aumentar ainda mais a exportação brasileira para o bloco europeu, que em 2018 chegou a US$14 bilhões apenas em produtos agrícolas.

“A tendência é reforçar ainda mais um quadro que já está elevado: se formos exportar mais soja, café e madeira, o impacto ambiental será ainda maior ”, explicou Larissa em entrevista à reportagem. “Por exemplo, o aumento da produção da soja tem se dado com o aumento da área, e é evidente que se houver demanda para mais produção agropecuária, teremos avanços sobre áreas que não estavam sendo destinadas para cultivos”.

Segundo Larissa Bombardi, o acordo só será benéfico para uma pequena parcela da sociedade brasileira. “Não é um acordo pensando para superar desigualdades, para coibir trabalho escravo ou uso de agrotóxicos”, explica.

Saindo do Brasil

O atlas foi apresentado para o Parlamento Europeu no dia 11 de maio. Pouco mais de um mês antes de lançar o trabalho, a professora Larissa Bombardi teve que deixar o Brasil. Desde 2019, quando lançou outro estudo relacionando o uso de agrotóxicos no Brasil com a União Europeia, a pesquisadora passou a ser intimidada por críticos ao seu trabalho.

Abrasco
A pesquisadora Larissa Bombardi teve que deixar o Brasil por questões de segurança para realizar seu estudo sobre agrotóxicos.

“Eu não tinha segurança para lançar esse trabalho vivendo no Brasil, porque sei que ele mexe diretamente com a espinha dorsal da estrutura dessa sociedade e do governo”, contou a pesquisadora à reportagem.

Larissa foi perseguida nas redes sociais por defensores do agronegócio, e chegou a receber indicação de movimentos sociais para que evitasse os mesmos caminhos, alterasse horários e a rotina para se proteger de possíveis ataques dos setores econômicos envolvidos no tema dos agrotóxicos.

Desde abril, Larissa está vivendo na Bélgica, onde continua estudando e garante que não deixará de pesquisar e publicar trabalhos sobre o uso de agrotóxicos no Brasil.

Confira a íntegra do atlas, disponível apenas em inglês.

Assimetria e prejuízos à saúde

Em 2018, os 31 países do bloco europeu exportaram 41 bilhões de euros em mercadorias para o Mercosul. No mesmo período, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai exportaram juntos 43 bilhões para a União Europeia, com o Brasil sendo responsável por 70% do total.

No entanto, Larissa Bombardi aponta para o que chama de “assimetria”: “As nações ricas exportam produtos industrializados e de tecnologia avançada, e os países mais pobres exportam bens básicos como alimentos e produtos de mineração. Até hoje, continuamos a reproduzir o modelo colonial que potências coloniais europeias estabelecidas há 500 anos”.

Para produzir em grande escala commodities para os países desenvolvidos, o Mercosul investiu em expansão de áreas agrícolas e em agrotóxicos. Segundo dados do atlas, enquanto o cultivo de soja aumentou em 53,95% entre 2010 e 2019 no Brasil, o uso de agrotóxicos cresceu 71,46% no mesmo período. A área utilizada para cultivo apenas de soja no Mercosul hoje é equivalente ao território total da França, terceiro maior país do continente europeu.

O professor de Relações Internacionais da UnB Alcides Costa Vaz explica que a ligação entre crescimento da área de plantio e aumento da produção agrícola não é uma regra. “Desde os anos 90, o mundo caminhou no caminho da produtividade da agricultura. Mas a concepção da agricultura brasileira continua sendo ainda de expansão da fronteira agrícola”, explica.

O atlas da pesquisadora Larissa Bombardi aponta também as consequências diretas na saúde que o “neocolonialismo” deixa para os povos sul americanos. Larissa explica que as ex-colônias europeias, que já tiveram suas riquezas naturais saqueadas, passam agora por outra fase de colonialismo. “Os povos dos países do Mercosul sofrem, em grande medida, uma espécie de violência química, evidenciada pelo grande número de pessoas envenenadas por substâncias desenvolvidas e frequentemente vendidas por países da União Europeia”, explica.

Em 2019, a Argentina registrou 171 casos de intoxicação por pesticidas usados ​​na agricultura local. Nos anos de 2012, 2015 e 2017, a quantidade de pessoas que sofreram intoxicação por agrotóxicos no Uruguai chegou a 766. Só em 2016, o Paraguai registrou 1330 pessoas intoxicadas com pesticidas.

No Brasil, o número de intoxicados é de quase 30 mil entre 2010 e 2019, segundo levantamento exclusivo da Agência Pública e da Repórter Brasil.

Algumas das principais empresas produtoras de agrotóxicos, como Basf, Bayer e Syngenta, têm sede em países europeus. Elas ganham bilhões vendendo para países com legislação mais branda, como o Brasil, produtos proibidos na Europa. De acordo com dados compilados por Larissa para o atlas, em 2018 e 2019, a União Europeia exportou para o Mercosul quase 7 milhões de quilos de agrotóxicos proibidos em territórios europeus.

Se o acordo comercial for ratificado, as tarifas sobre produtos químicos, como agrotóxicos, serão reduzidas em até 90%. O que faz com que indústrias químicas da Europa sejam favoráveis ao acordo.

Larissa explica que grande parte dos agrotóxicos proibidos na União Europeia saíram do mercado por serem ligados a graves problemas de saúde, como câncer, malformações fetais e anomalias hormonais. A exportação desses produtos, para ela, é mais um aspecto da relação assimétrica entre os dois blocos comerciais, que afeta negativamente a saúde e o meio ambiente da população de países do Mercosul.

“Este duplo padrão equivale a um acordo tácito que os cidadãos do Mercosul são “cidadãos de segunda classe”, visto que é admissível que eles sejam expostos a substâncias não toleradas na União Europeia”, explica a pesquisadora no trabalho.

Até mesmo a quantidade máxima de resíduos de agrotóxicos permitidos na comida e na água é diferente nos dois blocos econômicos. Larissa Bombardi compilou alguns limites estipulados pelos quatro países membros do Mercosul e os da Comissão Europeia.

O café brasileiro, por exemplo, pode ter até dez vezes mais Glifosato do que o permitido para a Europa. Já a soja argentina, pode ter vinte vezes mais Clorotalonil que a europeia. Enquanto a soja brasileira tem um limite cinquenta vezes maior que a da Europa para esse produto, a do Uruguai e do Paraguai têm um limite cem vezes maior.

Assim, a Europa vai acabar importando produtos com níveis superiores ao que permite em suas fronteiras, alerta a pesquisadora.

De acordo com a CropLife, associação que representa empresas produtoras de agrotóxicos como Basf, Bayer, Corteva, FMC e Syngenta, a desconformidade entre os limites de resíduos em países do Mercosul e da União Europeia ocorre devido a diferença no manejo de uma mesma cultura em diferentes países. “Quando não se observa o uso do produto na região, adota-se um valor mínimo (default), em geral muito baixo. Caso de culturas como soja (inexpressiva na Europa) e café (não produzido nos países europeus)”, informou em nota.

“Os LMRs podem, ainda, caracterizar uma forma de barreira ao comércio, quando estabelecidos em níveis excessivamente baixos e sem justificativa em dados técnicos. É importante destacar que o LMR é um parâmetro agronômico, não toxicológico. O fato de um agroquímico possuir alto ou baixo não tem nenhuma implicação direta sobre os riscos no consumo do alimento”, completou a associação.

Mais agrotóxicos e mais desmatamento na Amazônia

Junto com o avanço da área agrícola, cresce também o uso de agrotóxicos. O atlas traz mapas que mostram o crescimento no número de propriedades agrícolas que usam agrotóxicos na região da Amazônia Legal e como, no mesmo período, essas regiões apresentaram crescimento no desmatamento. “Os municípios que mais aumentaram o uso de agrotóxicos estão no arco do desmatamento na Amazônia, é muito evidente o que vai acontecer se o acordo for assinado: esse crescimento vai continuar”, explica Larissa.

E a Amazônia é um tema especialmente importante para o acordo comercial. Uma das cláusulas do tratado exigiu medidas eficazes de proteção ambiental consistentes com o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Desde a crise das queimadas na Amazônia em 2019, Áustria, Alemanha, França, Irlanda e Luxemburgo se colocaram contrários à ratificação do acordo.

“Diversos estudos mostram que a agricultura tem um impacto importante sobre o clima. O que atinge países como o Brasil, onde as principais emissões de carbono vem de queimadas. Com isso, vários países europeus, liderados pela França, afirmam que não há chances de ratificação enquanto o Brasil mantiver as posturas que vem mostrando agora em relação a políticas para o meio ambiente”, diz o pesquisador o professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Alcides Costa Vaz.

A CropLife Brasil discorda do resultado do trabalho apresentado pela pesquisadora da USP. “A agropecuária, como qualquer atividade que interfere no meio ambiente, tem se empenhado em buscar soluções que mitiguem seus impactos. Uma reação evidente é a crescente adoção de práticas conservacionistas pelos agricultores, como plantio direto, manejo integrado de pragas, tecnologias de aplicação de insumos e agricultura de precisão. No caso dos pesticidas, por exemplo, são notáveis os avanços na busca de moléculas mais específicas, fomentada pelo rigor das regulamentações em todo o mundo, e a acelerada incorporação de outras formas de controle de pragas e doenças que racionalizam o uso dos produtos químicos”, disse a associação em nota.

Em relação ao desmatamento ilegal, a CropLife diz que “há consenso entre especialistas que seu avanço não está ligado à expansão agrícola já que a produção comercial não precisa e não tem incentivos para crescer sobre áreas nativas”. Confira a íntegra da resposta da CropLife.

O Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) não quis comentar o tema. A reportagem também procurou o Ministério da Agricultura, que não respondeu até a publicação.