Agricultor mostra evidências sobre o efeito de agrotóxico em sua saúde
Pelos efeitos do Round Up, feito à base de glifosato, Monsanto perdeu processo em primeira instância, mas recorreu e foi absolvida. Sebastião Bernardo da Silva mostra dez laudos médicos indicando que suas doenças são sequelas da exposição ao agrotóxico
Pedro Grigori | Agência Pública/Repórter Brasil
2 de abril de 2020
Depois de passar cinco anos aplicando o glifosato em sua pequena lavoura de café, o agricultor Sebastião Bernardo da Silva desenvolveu um quadro de epilepsia e esquizofrenia que, segundo perícias feitas por um neurocirurgião, foi consequência à exposição ao agrotóxico. Com laudos médicos atestando que suas doenças eram sequelas da intoxicação, o pequeno agricultor obteve uma rara conquista judicial contra a gigante Monsanto em 2009. Mas sua vitória durou pouco. A empresa recorreu e ganhou em segunda e em terceira instância com argumento de que o caso estava prescrito.
Hoje, aos 68 anos de idade, Sebastião mora em Vitória, capital do Espírito Santo, longe das terras que cultivou durante quatro décadas. Aposentado e sofrendo com um delicado quadro de saúde, ele manda um recado para outros produtores que seguem aplicando o glifosato: “Não usaria de novo nem que me pagassem. Quando não mata a pessoa na hora, ele mata aos poucos”, afirma.
Tudo começou em 1992, quando ele buscava melhorar o resultado da plantação de café do seu sítio, de cerca de três alqueires de terra em Boa Esperança. Foi quando começou a usar o herbicida Round Up, produto da multinacional Bayer/Monsanto que tem como base o glifosato. De fato, o produto melhorou a produtividade da lavoura, mas aos poucos derrubou a saúde do agricultor.
Em 1997 veio o primeiro baque. “Estava um dia na roça e comecei a me sentir mal. A cabeça doía muito. Desmaiei, fiquei inconsciente e minha esposa me levou ao médico”, relembra Sebastião.
Ele passou 12 dias internado em um hospital em Vitória até receber o primeiro diagnóstico: esquizofrenia e epilepsia. Teria que deixar a fazenda e mudar-se para a capital para iniciar o tratamento. “Fiquei desesperado, toda renda da minha família vinha da roça”, conta.
O diagnóstico chegou cinco anos após ter ele contato com o herbicida da Monsanto pela primeira vez. Desde então, a saúde só piorou: depressão, pressão alta, diabetes, glaucoma, artrose e alterações no sistema nervoso estiveram entre os diagnósticos. “Foram idas e vindas ao hospital, vários médico e psiquiatras, e tudo só piorava. Os médicos disseram que era consequência do contato com agrotóxicos”, diz.
Sebastião, que é casado e tem quatro filhos, diz ter mais de 50 laudos médicos que apontam a intoxicação por Round Up.
Comprovação médica
A reportagem teve acesso a dez desses laudos médicos, sendo que oito deles estão transcritos na decisão da ação no STJ. O primeiro data de julho de 1997. O médico que acompanhou o caso, o neurocirurgião Fred Tannure, identifica um quadro de “intoxicação aguda por agrotóxicos, apresentando crise convulsiva g.mal (grave) e distúrbio mental”.
Dois meses depois, outro laudo do mesmo médico atesta um “quadro de epilepsia temporal e distúrbio do comportamento que o impede (o agricultor) de exercer atividades de profissão e de negócios temporariamente”.
Em laudo de três anos depois, em 2000, Tannure escreve que os quadros de esquizofrenia e epilepsia temporal tornavam Sebastião incapaz em caráter permanente. Em 2002, mais um laudo do neurocirurgião atesta que o agricultor estava há cinco anos em tratamento neurológico e o encaminha para a psiquiatra “por apresentar invalidez permanente por acidente de trabalho, ocorrido pelo manuseio de agrotóxico do tipo Roundup, aplicado na sua lavoura para eliminação de ervas daninhas, o que lhe causou sequelas físicas e mentais”.
Outro exame, feito em 2008, ainda encontrou resíduos do agrotóxico no sangue de Sebastião, 11 anos após ele parar de utilizar o herbicida.
“Decidi guardar todos os remédios que eu tomava, já são mais de 100 mil comprimidos”, conta. Ele apresenta o saco onde guarda as embalagens, com mais de um metro de altura, como prova das consequências dos agrotóxicos em sua vida. Entre os medicamentos encontram-se o Rivotril (antidepressivo e ansiolítico), o Lodipil (hipertensão), Pamelor (antidepressivo) e o Tegretol (epilepsia e dor neuropática).
A conta das doenças
Após o primeiro diagnóstico, em 1997, Sebastião deixou a família no interior e foi morar com uma tia em Vitória. “Nunca mais voltei para a roça”, lamenta. Meses depois ele vendeu o sítio e toda família se mudou para a capital.
Apenas em 2000 Sebastião conseguiu aposentar por invalidez. Hoje, recebe um salário mínimo, mas gasta quase a metade, cerca de R$ 450, apenas com medicamentos. “Tomo remédios para diminuir as dores que sinto. Tenho insônia, então preciso de comprimidos para dormir. Além do medicamento para diabete e os problemas na cabeça”, diz.
A filha do aposentado, Suelly da Silva, acompanha de perto a luta do pai. “Desde a primeira ida ao hospital, lá em 97, o médico disse que as doenças eram consequências do agrotóxico que ele mexeu. E aí vem aparecendo problemas novos, agora os dedos do pé dele não estão movimentando mais”, conta.
Em 2005, Sebastião ajuizou ação de indenização de responsabilidade civil por dano material e moral contra a Monsanto, sob o argumento de que o manuseio do herbicida Roundup em sua lavoura foi a causa de uma série de problemas de saúde, que culminou com a concessão de aposentadoria por invalidez. “Demorei muito para me recuperar a ponto de pensar no processo”, explica ele.
A decisão saiu quatro anos depois. O juiz Abgar Torres Paraíso, da 11ª Vara Especializado em Defesa do Consumidor julgou parcialmente procedente a denúncia e condenou a Monsanto a pagar ao agricultor R$ 250 mil como indenização por danos morais, uma pensão mensal e vitalícia no mesmo valor pago pela Previdência Social, além de um valor mensal de R$ 139,49 cobrado de novembro de 1997 até a data da decisão, em 2009, totalizando cerca de R$ 23 mil.
O valor da da indenização foi baseado na multa mais alta aplicada pelo STJ até então, no valor de R$ 360 mil em um caso onde a vítima havia ficado em estado vegetativo por erro um erro médico. Com base nesse valor, o juiz estipulou o valor indenizatório para o agricultor que ficou com incapacidade total.
A empresa recorreu a decisão. Na segunda instância, além de argumentar que as provas apresentadas demonstram “de forma inequívoca a inexistência” o nexo causal entre as doenças e o agrotóxico, a defesa apelou pelo prazo de prescrição para a denúncia. De acordo com o artigo Art. 27 do Código de Defesa do Consumidor, o pedido de reparação pelos danos causados por um produto prescreve em cinco anos, sendo que a contagem passa a valer no momento em que o dano é conhecido.
A defesa de Sebastião alega que o prazo de conhecimento do dano deveria ser contado a partir de 23 de fevereiro de 2002, data em que o neurocirurgião Fred Tannure emitiu laudo definitivo acerca de sua invalidez permanente.
O Tribunal capixaba avaliou o que o prazo prescricional iniciou-se quando Sebastião passou a sofrer com os problemas de saúde. “O apelado tinha ciência inequívoca de seus problemas de saúde desde o ano de 1997, quando foi internado com suposto quadro de intoxicação aguda por agrotóxicos, apresentando crise convulsiva e distúrbio mental, como se extrai dos atestados médicos juntados aos autos, inclusive do laudo datado de 23.02.2002, circunstância que, segundo o próprio apelado, o levou a abandonar, naquele mesmo ano (1997), o trabalho rural”, diz a decisão.
Sebastião, então, recorreu e, em 2015, o relator da ação no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, votou contra o agricultor, seguindo o entendimento do Tribunal do Espírito Santo. “Os argumentos expendidos nas razões do regimental são insuficientes para autorizar a reforma da decisão agravada, de modo que esta merece ser mantida por seus próprios fundamentos”, afirmou na decisão. Os ministros Marco Buzzi, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro, João Otávio de Noronha, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o relator, e por unanimidade a seção decidiu por arquivar o processo.
Sebastião lamenta: “Receber a indenização me ajudaria a pagar o tratamento de remédios que estou tomando. Queria que algum advogado pudesse me ajudar”.
Líder de vendas e de processos
O glifosato, nome do ingrediente ativo do Round Up, é o agrotóxico mais usado no país. Apenas em 2018, foram vendidos 195 mil toneladas, segundo o Ibama.
Existem hoje 123 produtos formulados à base do glifosato. Eles são usados para o controle de mais de 150 plantas infestantes em variados cultivos – de soja e café até feijão, maçã e uva.
Em 2016, a empresa alemã Bayer adquiriu a americana Monsanto pelo valor de US$ 63 bilhões. Desde então, a empresa é a líder mundial no mercado de sementes, fertilizantes e agrotóxicos.
A gigante do mercado de pesticidas enfrenta uma série de ações contra o glifosato: cerca de 20 mil processos apenas nos Estados Unidos. Em agosto de 2018, foi condenada a pagar US$ 289 milhões ao jardineiro Dewayne Joshson, que enfrenta um linfoma desenvolvido por utilizar o herbicida. Em março do ano, também foi condenada a pagar R$ 80 milhões de indenização ao aposentado Edwin Hardeman, que enfrenta um linfoma não-Hodgkin, um tipo de câncer que tem origem nas células do sistema linfático, por ter mantido contato com o Round Up por 20 anos.
No Brasil, são raros oscasos em que um trabalhador que aplica o agrotóxico consegue receber os danos da empresa que o fabricou , conta a pesquisadora Ranielle Caroline de Sousa. Doutora pela Universidade de Brasília, ela fez um extenso levantamento sobre o assunto e encontrou apenas um caso como o de Sebastião, em que o trabalhador ganhou ao responsabilizar a fabricante de agrotóxicos. Mas, no único caso em que a empresa foi condenada sem opção de recorrer, a vítima era o piloto do avião que pulverizava o pesticida.
Ela explica que a maior dificuldade nesses processos é demonstrar o nexo causal. “O caso do Sebastião é importante justamente porque ele conseguiu demonstrar que as doenças e incapacidades que ele desenvolveu foram consequência da relação direta com o Round Up”, afirma.
A Agência Pública e a Repórter Brasil questionaram a Bayer/Monsanto sobre o caso e processo do agricultor Sebastião Bernardo da Silva. A empresa respondeu, por nota, que “a ação transitou em julgado e não ficou comprovado nenhum nexo causal entre o uso do glifosato e as doenças alegadas pelo demandante”.
“As soluções à base de glifosato têm sido utilizadas com segurança e sucesso no Brasil e, globalmente, há mais de 40 anos. Há um robusto número de pesquisas sobre herbicidas à base de glifosato, composto por mais de 800 estudos, e um extenso consenso científico partilhado pelos principais órgãos reguladores em todo o mundo, de que o Glifosato é um produto seguro, sempre que observadas as orientações de bula”, informa o texto.
Cientistas e organizações discordam desse argumento da empresa. Em 2015, a Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc) da Organização Mundial de Saúde (OMS), que em 2015 concluiu que o glifosato é “provavelmente cancerígeno” para humanos. Outro estudo, agora de 2017, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) mostrou que o uso de glifosato provoca alterações no DNA, resultando em doenças crônicas como diabetes, doenças neurológicas, alzheimer, esclerose lateral amiotrófica (ALS) e doença de Parkinson.
“Quando o Glifosato é considerado provável cancerígeno, temos uma afirmação relacionando ele a doenças crônicas, que passam também por alterações hormonais e produção de um conjunto de efeitos que podem contribuir com essa quantidade de doenças”, conta Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), referindo-se às condições de Sebastião. “Infelizmente, não há programas voltados à saúde do trabalhador que acompanhem o agricultor e façam mensurações dos efeitos a longo prazo dos produtos, o que faria você ter um conjunto de provas”, explica.
Segundo Luiz Cláudio, que já atuou como gerente-geral de toxicidade da Anvisa, quando a ciência aponta que o produto é perigoso para à saúde, o regulador tem que tomar uma atitude da mesma proporção, agir preventivamente, retirando o produto do mercado. “Mas as agências reguladoras, tanto do Brasil, quando da Europa e dos Estados Unidos, são vinculadas ao setor econômico, e chegam a conclusão de que o parecer da OMS dizendo que o produto é cancerígeno não é válido”, explica.