Fim das abelhas? Cidade gaúcha de Cruz Alta perdeu 20% das colmeias
Apicultores dizem que crise começou no final do ano passado com uso desenfreado de agrotóxicos. Cerca de 100 milhões de abelhas morreram na cidade, um quinto do total de abelhas mortas no país
Pedro Grigori | Agência Pública/Repórter Brasil
7 de março de 2019
O zumbido das abelhas não incomoda nem assusta o apicultor gaúcho Salvador Gonçalves, de 58 anos. Pelo contrário. Para o criador dos insetos produtores de mel há 34 anos, o som o faz sentir em casa. “Tá no meio das abelhas para mim é a mesma coisa de tá no meio de gente”, diz. E é por isso que o dia do gaúcho de Cruz Alta, município localizado a 336 km ao noroeste de Porto Alegre, não pode começar sem uma visita ao apiário logo cedo. “Tenho umas 50 caixas de méis perto de casa. Chego de manhã não tem uma (abelha), passa uns cinco minutos elas tão tudo lá me rodeando. Dou uma parada para conversar com elas, aí digo ‘vocês não vão trabalhar hoje não?’, daqui a pouquinho já tão tudo lá trabalhando”, completa.
“Comecei quando ganhei duas caixinhas (colmeias) de um amigo, fui tratando e acabei gostando da profissão, do trabalho da harmonia. Hoje tenho por volta de 400 caixas, é de onde vem meu sustento”, lembra Salvador.
Enquanto dirige sua caminhonete até a Feira dos Produtores de Cruz Alta, onde os apicultores da região vendem mel, Salvador ri ao lembrar os bons momentos das quase quatro décadas de profissão. Para ele, as abelhas são insetos inteligentes, fiéis e até mesmo ciumentos. “Se chega uma pessoa estranha falando alto comigo pode se preparar porque daqui a pouco elas botam ela pra correr dali”, conta. Na feira, ele cumprimenta os parceiros de profissão e lamenta a maior crise já vivida pelos produtores locais de mel. “Não dá mais lucro, se continuar assim essa vai ser a última geração de apicultores”, conta.
A causa são os recorrentes casos de mortes em massa de abelhas. Em pouco mais de um mês cerca de 20% das colmeias de Alta Cruz foram totalmente perdidas e cerca de 100 milhões de abelhas morreram – um quinto do total de abelhas mortas no país, segundo levantamento da Agência Pública e Repórter Brasil.
Com população de cerca de 60 mil pessoas, a economia de Cruz Alta baseia-se em um forte setor primário, através, principalmente, da produção de soja, uma das culturas que mais utiliza agrotóxico à base de Fipronil. O inseticida é um dos mais tóxicos para abelhas. Segundo os apicultores da região, o veneno é aplicado por pulverização aérea, entrando em contato diretamente com os insetos. A maioria acaba morrendo na hora. As que sobrevivem ficam desorientadas e tentam voltar à colmeia. Muitas não resistem ao caminho e as que conseguem acabam infectando toda a comunidade, que acaba exterminada em menos de um dia.
Salvador é o presidente da Associação dos Apicultores de Cruz Alta (Apicruz), instituição com 47 anos de existência. Segundo ele, entre 2015 e 2016 ocorreu o primeiro surto significativo de mortalidade de abelhas na região, com o abatimento de 810 colmeias. “Espalhei o que estava acontecendo para a imprensa, divulgamos muito e começou a diminuir os casos nos anos seguintes”, diz.
Prejuízo
Em dezembro do ano passado, segundo a Apicruz, um novo surto de mortes teve início. “Começou a cair uma grande quantidade de agrotóxico em cima do meio ambiente. Apareceram uns venenos muito bravos. Eles colocam de avião de manhã e à tarde as abelhas já começam a aparecer mortas”, explica. Cerca de 1,5 mil colmeias foram totalmente perdidas em pouco mais de um mês, segundo os cálculos da associação. As mortes superam as 100 milhões de abelhas apenas em Cruz Alta. “Na última semana perdi 40 caixas de abelhas. Além do prejuízo de largar o enxame, tive que jogar 400 quilos de mel fora, pois há risco de ter veneno no produto”, conta Salvador.
Em média, o quilo de mel é vendido por 20 reais. Com isso, de uma vez só, o apicultor teve prejuízo de R$ 8 mil reais apenas com o produto.
Cruz Alta é um forte polo de produção de mel. O produto é vendido diariamente na Feira dos Produtores, e, todo mês de maio, a Prefeitura junto a Apicruz promovem a Feira do Mel, que neste ano estará na 43ª Edição. O evento atrai turistas e apicultores de todo estado ao Calçadão do município, principal ponto comercial da pequena cidade.
Porém, com as baixas no número de abelhas, os produtores temem pelo futuro da festa. A Apicruz perdeu metade dos seus associados de duas décadas atrás. Hoje são apenas 20. “É um trabalho difícil, esse de apicultor. Cada vez menos gente quer, ainda mais com esses prejuízos que estamos levando. Se continuar assim não sei o que vai ser da nossa produção de mel no futuro”, relata Salvador.
Além do impacto na produção de mel, os apicultores temem também pelo impacto no meio ambiente. As abelhas são os principais polinizadores existentes. No Brasil, das 141 espécies de plantas cultivadas para alimentação humana e produção animal, cerca de 60% dependem em certo grau da polinização deste inseto. “A Apicruz faz um trabalho de recolhimento de colmeias em áreas urbanas. Recebemos a ligação, muitas vezes porque as pessoas estão sendo picadas, e vamos ao local. Agora, passamos a perceber que esses casos estão diminuindo cada vez mais”.
Pesquisas realizadas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Aroni Sattler em 2018, com coletas sendo feitas também inclusive no município de Cruz Alta, mostraram que cerca de 80% ingeriram ou tiveram contato com Fipronil antes de sucumbir.
Um motivo para o silêncio: apicultores dividem terras
Os apicultores de Cruz Alta não são proprietários de terras. Eles fazem acordos com produtores de soja, que cedem espaço nas lavouras para que sejam instaladas as caixas. Com isso, os dois lados ganham. Os apicultores recebem espaço para produzir, e as agricultores veem a qualidade da plantação de soja melhorar com a presença de polinizadores.
Porém, esse acordo também cria uma relação que dificulta as denúncias de uso exagerado de agrotóxicos. “Estamos com nossas caixas lá nas terras deles. Se denunciamos ou reclamarmos, eles mandam a gente tirar nossas abelhas dali e ficamos sem lugar para trabalhar”, conta Salvador.
Quem também está passando por prejuízo é o apicultor Almiro Hurback, de 66 anos. Dono de 80 caixas de abelha, ele perdeu 25% de toda a criação em pouco mais de um mês. “Minha ideia é não investir mais. A gente trabalha o ano todo, aí na época de colher não tem retorno. Nosso gasto é grande, organizamos as colmeias, passamos cera, colocamos pasta, aí chega a época do retorno e não conseguimos tirar um fardo de mel de 40 colmeias”, conta.
Almiro e Salvador tentam conversar com produtores de soja da região, e pedem que eles invistam em venenos biológicos, que não são letais a abelhas. “A gente fala, eles mudam, aí depois voltam pro Fipronil. Não há muito o que fazer”, explica Almiro.
A Apicruz e o Sindicato Rural de Cruz Alta, que representa os produtores rurais do município, marcaram para abril encontros e reuniões entre os apicultores e os agricultores. O objetivo é encontrar um acordo para a redução dos agrotóxicos que não prejudique nenhum dos dois lados.
“Não queremos que as abelhas morram, ainda mais porque há agricultores que também são apicultores, mas também não podemos simplesmente parar de usar os agrotóxicos”, relata Daniel Jobim, presidente do Sindicato Rural.
Produtores de soja da cidade estão arredios com as acusações que ligam o uso dos agrotóxicos com a mortandade de abelhas. “Há uma suspeita muito forte de que as mortes ocorreram pelo uso de inseticidas, mas há também muita acusação, muito dedo na cara vindo dos órgãos e da imprensa”, acrescenta Daniel. Questionado sobre a pulverização aérea de agrotóxicos à base de Fipronil, o presidente do Sindicato Rural afirma não ter conhecimento sobre os casos.
Os apicultores reuniram fotos, vídeos e publicações sobre a mortandade para entrar com uma denúncia pelo Ministério Público, o que ainda não foi feita. Atualmente eles discutem o melhor rumo de ação. “Não sei se ia ter retorno, o mercado da soja é muito forte”, explica Salvador.
Para manter o trabalho como produtor de mel, ele pensa até em deixar o município. “A única saída é ir para região de fronteira, quase na costa do Uruguai. É um lugar de muito campo, muito gado. Soja não entra e nem vai entrar. Lá dá para continuar, porque aqui não tem jeito não”, desabafa.
“Tem gente que gosta de pescar, tem gente que gosta de andar de cavalo. Para nós abelha é uma distração. Me faz sentir conectado com o mundo, com o meio ambiente”.
Como funciona a criação de abelhas
Se hoje a apicultura está marcada pelos prejuízos de enxames, há décadas o ramo era conhecida como um meio de trabalho onde não havia perdas. Era possível lucrar com quase tudo que a abelha produzia. Além do mel, pode ser vendido a geleia real, o própolis, que tem propriedade anti-inflamatórias, a cera de abelha, utilizada na indústria cosmética, e até mesmo o veneno da picada, usado na composição de diversos remédios.
Há também aqueles que criam os insetos para vendê-los para produtores rurais. Isso porque quando as colmeias são instaladas em lavouras a qualidade e quantidade da colheita aumenta.
O apicultor constrói caixas de madeira para abrigar as colmeias e depois retirar a produção das abelhas com maior facilidade. Todo contato com as abelhas tem que ser feito usando roupa adequada – o macacão de apicultura.
Quanto mais culturas estiverem florescendo na região, maior será a produção de mel. Por isso, a primavera e verão são as estações em que os apicultores têm melhores colheitas. Em épocas de inverno intenso, com bastante frio e chuva, os produtores têm que alimentar as abelhas para impedir que os enxames morram. “A alimentação delas é mel e pólen, aí vamos de manhã fazer a aplicação para garantir que elas aguentem o inverno”, diz o presidente da Apicruz.
Na época da colheita, cada apicultor consegue retirar em torno de 12 quilos de mel de cada caixa por quinzena, a depender do tamanho.