“É diário”, professor denuncia intoxicação por agrotóxicos como algo recorrente em escolas rurais

Ele foi ameaçado e proibido de falar com a imprensa depois que seus alunos passaram a apresentar sintomas frequentes de contaminação. Estudo da Human Rights Watch aponta que problema é sistemático no Brasil rural

Ana Aranha | Repórter Brasil

20 de julho de 2018

Mais de cinco anos depois que 90 crianças foram intoxicadas quando um avião pulverizou agrotóxicos sobre uma escola em Rio Verde, interior de Goiás, alunos e professores da região continuam expostos à intoxicação dos químicos cotidianamente. Essa é a denúncia feita por Hugo Alves dos Santos, diretor da escola em 2013, ano do acidente, e uma das suas vítimas.

Ele é convidado especial para o lançamento de novo relatório da Human Rights Watch sobre intoxicações por agrotóxicos em zonas rurais do Brasil. Depois de visitar sete locais do país, o estudo conclui que casos como a da escola de Rio Verde estão se repetindo de modo sistemático: crianças, professores e moradores do campo são intoxicados em escalas menores, mas de modo disseminado, sem chamar a mesma atenção que teve o acidente.

Ex-diretor da escola que foi pulverizada por agrotóxicos foi proibido de falar com a imprensa (Foto: Lunaé Parracho / Repórter Brasil)

Desde que fez as denúncias sobre o caso, Hugo perdeu o cargo de diretor e hoje dá aula como professor de educação física em cinco escolas rurais do mesmo município. Segundo ele, todas essas unidades têm registros constantes de sintomas de contaminação. “Num primeiro momento houve interesse da mídia, depois os alunos ficaram esquecidos”, ele diz, desanimado com as perspectivas das vítimas.

A Syngenta, que produziu o agrotóxico pulverizado, e a Aerotex, proprietária do avião, foram condenadas a pagar R$150 mil reais por danos morais coletivos em março desse ano. Em nota, a Syngenta lamenta o ocorrido, afirma que não teve participação na atividade de pulverização e que está recorrendo da sentença. A Aerotex afirma que não vai se manifestar enquanto o recurso da Syngenta não for julgado (leia as respostas na íntegra da Syngenta e Aerotex).

Para Hugo, pior do que ver esses alunos sem o tratamento médico que ele considera adequado, é observar que eles e seus colegas estão expostos a um risco ainda mais grave que o acidente de 2013: a intoxicação silenciosa.

Repórter Brasil – O que mudou desde que a escola foi pulverizada?
Hugo Alves dos Santos – Não mudou nada. Foi criada uma lei municipal que proibiu sobrevoar para aplicar veneno de avião dentro dos assentamentos. Também foi proibido plantar a 500 metros das escolas, para evitar a aplicação do veneno perto. Mas ninguém respeita essa lei. O veneno é aplicado por tratores, passam bem ao lado das escolas. Fora dos assentamentos, o avião continua pulverizando o veneno perto. Ninguém fiscaliza, ninguém tem coragem de cobrar desse pessoal [produtores rurais].

Há novos casos de intoxicação?
Sim, é diário. As crianças reclamam de dor de cabeça, dor no estômago. Tem uma professora que teve de deixar o ensino rural. Ela foi [transferida] para a cidade porque, toda vez que tinha contato com o veneno, tinha problemas na pele. Hoje, eu estou [como professor de educação física] em 5 escolas diferentes, todas têm plantação em volta. Em todas os alunos são intoxicados com frequência, mas não podem falar que é do agrotóxicos porque os pais trabalham nas fazendas. Os alunos só falam com a gente, professores. Mas, quando a gente procura os pais, eles dizem que não é por causa dos agrotóxicos. Eu falo muito sobre isso na escola, mas sei que em casa não pode. Se o pai falar, perde o sustento dos filhos. É uma situação difícil de mudar.

Como estão os alunos que foram intoxicados em 2013?
Muitos têm problemas. Um deles tem cirrose hepática, uma aluna já foi internada 18 vezes. Os que continuam a entrar em contato com o veneno falam de dor de cabeça, boca pinicando, dizem que as pálpebras dos olhos ficam geladas. Depois que a imprensa sumiu, esses alunos ficaram esquecidos. Estão sem nenhum atendimento, a maioria já não tem mais nem direito a receber remédios. As empresas só ajudam quando tem ordem judicial. O MPF fez um termo de ajustamento de conduta dizendo que as crianças precisavam passar por uma bateria de exames a cada 6 meses. Eles fizeram a primeira, eu levei na segunda, depois não fizeram mais.

“Fizemos várias ocorrências, não existe justiça”, diz morador sobre pulverização que afeta sua comunidade em Minas Gerais (Foto: Marizilda Cruppé / Human Rights Watch)

As empresas envolvidas foram punidas?
Eu acho que, pelo tamanho do acidente, eles não pagaram nada. Num primeiro momento, foram muito prestativos, mas depois só com pedido judicial. A multa [ação civil pública do MPF] pedia 10 milhões da Aerotex, empresa do avião que jogou o veneno, e da Syngenta, a fabricante. Mas a sentença saiu em 150 mil reais. Mesmo nesse valor as empresas recorreram, tenho medo que não fique nada no final. E isso nem é para as famílias, é para ser aplicado em alguma melhoria na comunidade.

Como foi a reação das autoridades locais ao acidente?
Eles ficaram com deboche. Dias depois, quando as crianças continuavam passando mal e eu tinha que levar na cidade, eles diziam: “lá vem os envenenados”. Diziam “esses meninos não tem nada, tão com manha”. Isso eu ouvia das pessoas que atendiam a gente no hospital e dos vereadores.

Isso aconteceu porque a escola ainda estava suja de veneno. Eu recebi uma ordem do secretário de educação para voltar a trabalhar cinco dias depois do acidente. Foram de 25 a 30 alunos, todos sentiram mal novamente: coceira, dor de cabeça forte. Eu fiquei uns 15 dias na escola com os alunos passando mal. Até que recebi uma visita do [Wanderlei] Pignati [professor da Universidade Federal do Mato Grosso]. Ele disse que a escola estava contaminada, tinha de fechar. A Aerotex contratou uma empresa que fez uma limpeza mais detalhada e pintou a escola, aí melhorou.

No Mato Grosso, outro caso de intoxicação aguda dentro da escola. “Eu comecei a vomitar, as aulas foram canceladas”, diz aluna (Foto: Marizilda Cruppé / Human Rights Watch)

 

Você foi proibido de falar com a imprensa sobre o caso?
Sim. Chegou um momento que o pessoal da [secretaria de] educação disse: “a partir de hoje você não vai mais falar com a imprensa, a gente vai escolher quem é a pessoa que vai falar”. Me proibiram mesmo. Depois de três anos, eu fiz um evento para falar sobre agrotóxicos com a comunidade, mas o prefeito me chamou num canto e disse “se for para falar de agrotóxico, eu não vou”. Então eu não pude falar, tive que fazer uma fala ‘light’. Tanto o prefeito quanto o secretário de saúde da época são produtores rurais.

Você sofreu alguma ameaças?
Várias. Tive que mudar várias vezes de local. Eu via carros rondando minha casa, pessoas que eu tinha certeza que estavam ali para me intimidar. Fiquei dois anos e meio sem falar com a imprensa.

Como você vê o debate para mudar a lei dos agrotóxicos?
Acho que eles vão aprovar o pacote da morte. Para mim, quanto mais agrotóxicos forem liberados, mais gente vai morrer. Se passaram cinco anos do acidente, corri muito atrás das coisas para esses meninos, mas agora parece que perdi as forças. Eu queria que as autoridades vejam que essas crianças vão ter problemas de saúde futuramente. Eu não sei porque, mas com o passar do tempo, a memória do acidente fica mais viva em mim. À noite, quando vou relaxar para dormir, as imagens daquele dia voltam na minha cabeça.

Qual foi a memória mais forte daquele dia?
Eu vou levar para o túmulo quando vi as crianças deitadas no pátio se debatendo, coçando, pedindo socorro. Quando elas chegaram no hospital desmaiadas, gritando “tio Hugo, não me deixa morrer”.

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